Dom Felismar Manoel
O estudo do capítulo 6 do evangelho segundo
João é interessante para compreender a presença sacramental de Cristo na
Eucaristia, Divina Liturgia, ou Santa Ceia.
Nesse capítulo vamos encontrar a contextualização
do fenômeno da multiplicação dos pães e peixes, coisas concretas, reais, que
saciavam a fome do povo que frequentava as prédicas de Jesus Cristo. Seus ouvintes trouxeram à tona, a questão do
"maná" com Moisés no deserto, também coisa concreta que saciava a
fome da população, e que os judeus consideravam como o "pão do céu".
Jesus referiu-se a si mesmo como o Pão
Vivo que desceu do céu e afirmou que
quem comer desse pão viverá eternamente. Seus ouvintes entenderam como o
pão material, real, coisa concreta; afirmou que a sua carne é verdadeira comida
e o seu sangue verdadeira bebida; muitos murmuraram por causa das suas
afirmações, outros se escandalizaram, alguns discípulos se dispersaram porque
entenderam estas afirmações no sentido real, de coisa concreta, o que o levou a
interrogar os doze, se também eles não queriam se retirar? Simão Pedro
respondeu aquilo que os outros onze também pensavam: Para quem iremos? Se tu
tens as palavras da vida eterna!
É interessante notar que na contextualização
deste capítulo, Jesus deixa claro que, a maioria que o procurava, o estava
fazendo interessado no pão e peixe coisa real e concreta, por interesse. Ele deixa claro que o que está afirmando é de
outra ordem, dizendo "o espírito é que vivifica; a carne para nada
aproveita; as palavras que eu vos tenho
dito são espírito e são vida".
1 - Assim foi pensado no inicio da Igreja, na
Era Apostólica: No capítulo 10 da Didaqué, um manual da era apostólica, quando fazem o agradecimento depois da
Eucaristia, dizem:
"Tu, Senhor
Todo-Poderoso, criaste todas as coisas por causa do teu Nome, e deste aos
homens o prazer do alimento e da bebida, para que te agradeçam. A nós, porém, deste uma comida e uma
bebida espirituais, e uma vida eterna por meio do teu servo".
2 - Também na Era
Pós-Apostólica, no período do Helenismo, prevalecendo nos Santos Pais e ainda
nas Igrejas Ortodoxas que os mantém, fala-se da Santa Ceia, ou Eucaristia, como
a Divina Liturgia. O termo usado na língua grega da época é misterion, o equivalente a sacramento para
nós ocidentais. Há uma relação da idéia
da celebração do mistério, na língua grega, quando equivalente ao nosso
sacramento no ocidente, com a palavra telestikos,
sustentando o sentido de "bem
acabado", coisa de "rito sacerdotal".
A presença sacramental de Cristo no mistério
da eucaristia, na Era Pós-Apostólica é espiritual, por hipóstasis
com as substâncias do pão e do vinho. Por isto o sacramento só tem a
função de ser o meio para se realizar a
união com a Trindade no Amor de Cristo, com todos os irmãos que participam da Comunhão dos Santos, posto
que todos são Membros do Corpo Místico de Cristo; não o guarda para adoração, nem para exibição
exposta, nem para a comunhão fora da Divina Liturgia. Esta é sempre uma
celebração do Sacrifício Memorial do Filho de Deus, que começou com a
Encarnação e culminou com sua Morte, Visita ao Hades e concluiu com sua Vitória
sobre a morte, o mundo e o pecado
mediante a sua Ressurreição,
Ascensão e Entronização à dextra do Pai.
3 - Na Igreja do ocidente existem diferentes
posturas face ao Sacramento da Presença de Cristo na Eucaristia. Talvez as
dificuldades tenham surgido pela inadequação da terminologia usada no Concílio
de Trento. Toda confusão começou quando o Concílio usou um termo técnico,
exigindo interpretação técnica, na época que a maioria dos Padres não tinham
curso de seminários, pois estes passaram a existir a partir do Concílio de
Trento. A grossa maioria dos Padres não faziam curso de teologia, pois estes só
existiam nas Universidades, dai a dificuldade para estabelecer a diferença
entre substância e matéria naquela época.
Pode-se referir-se a matéria composta de
substâncias nem sempre se referindo a coisas concretas; ou seja, como corpo
material. Falar em matéria e substância obrigatoriamente nos levam às ciências
físicas e químicas e não necessariamente às filosofias e literaturas. Quando se
usa o termo transubstanciação em relação ao sacramento da eucaristia, obrigatoriamente
temos que nos valer do raciocínio filosófico-teológico, e é aí que começa a
dificuldade, posto que a maioria das pessoas comuns só o entendem do ponto de
vista do senso comum, que é o sentido da matéria como realidade concreta,
aquilo que ocupa lugar no espaço, curvando-se a pseudo autoridade de quem revela
o sagrado, para aceitar a ambiguidade em nome do "mistério".
A definição de sacramento da Igreja Ocidental
é de grande ajuda nessa compreensão:
"Sacramento traz a idéia de
penhor", e é tomada da cultura romana, quando os jovens podiam postergar a
data de prestar o serviço militar, depositando um penhor, um sacramento, cujo
valor seria resgatado quando fosse se apresentar para o serviço militar, já
mais tarde. Em nosso sistema financeiro do Brasil, ainda usamos a figura do
penhor, o sacramento dos romanos, quando levamos um objeto de valor na Caixa
Econômica e recebemos um empréstimo relativo ao valor do objeto, sendo este
resgatado quando formos pagar o tal empréstimo.
A Igreja Ocidental usou este sentido para
explicar o conceito de sacramento: algo material existente, disponível na igreja pela
misericórdia de Deus e méritos de Jesus Cristo, e que nos confere uma graça
espiritual quando a ele recorremos como depositário desta benção, não no
sentido material da carne que nada aproveita, mas no sentido de espírito e
vida.
Quando a teologia usou o termo
"transubstanciação", no sentido que a usou, ela estava correta, pois
no sacramento da eucaristia há mudança de substância. Transubstanciação quer
dizer mudança de substância; ai vem a antiga idéia eclesial da hipóstasis, ou
seja, Cristo está por inteiro sob as espécies do pão e vinho consagrados, à
semelhança da presença da sua divindade sob a sua humanidade, presença esta que
a teologia classifica também de hipostática.
A substância do pão e do vinho é constituir-se
em nutrientes para o corpo, manter a vida biológica, enquanto sob a mesma
materialidade do pão e do vinho no sacramento, encontra-se agora em hipóstasis,
como substância, a presença espiritual do Cristo, como nutriente da alma para a
vida eterna, a vida em plenitude, a zoesia que o Cristo disse que veio
trazer à terra, a vida em abundância.
Quando se fala em substância pode -se
referir-se á parte mais importante de algo, a sua essência. Este é o sentido
filosófico e teológico do termo. Quando se fala em matéria está se referindo a
uma substância que ocupa lugar no espaço. Este é o sentido mais usado no senso
comum, podendo ser substituído pela idéia de corpo; em linguagem científica,
refere-se à rex extensa da
metodologia cartesiana. É neste sentido que o senso comum usa o termo
"real", e "realidade", referindo-se a concretude da
materialidade, quase não cabendo aí as idéias abstratas, os conceitos das
abstrações. Por esta razão é que não se recomenda falar em presença real, e
sim, em presença sacramental, em presença espiritual, pois no sacramento da
eucaristia Jesus Cristo afirmou estar presente em hipóstasis com o pão e
o vinho.
É neste sentido que a teologia salomonita se
refere à transubstanciação, afirmando que no sacramento da eucaristia a
substância nutricional dos elementos pão e vinho se transformou, sem alterar a
anterior; agora, de modo hipostático, o corpo e o sangue de Jesus Cristo
estão presentes, como alimento espiritual para a vida eterna, como penhor da
comunhão com Deus e todos os seus filhos reunidos no amor de Cristo. Sua
finalidade é ser alimento espiritual para perenizar a comunhão de todas as
almas crentes e fiéis com Deus seu e nosso Pai, reunidos em seu nome e em seu
amor.
4 - Teologicamente falando, também a Igreja é
o sacramento da presença viva de Cristo no mundo, pois todos seus legítimos
filhos, são membros do Corpo de Cristo, e assim devem fazê-lo presente através
de suas ações, construindo um mundo melhor que possa ser chamado de Reino de
Deus.
Dom Felismar Manoel
Bispo Primaz
Catolicismo Evangélico Salomonita