Diante de tantas datas comemorativas eu me
deparei com o fato de que pouca ou nenhuma menção eu ouvi hoje ao dia da
Abolição da Escravidão e quiçá ao Dia dos Pretos Velhos. Quanto ao dia de Nossa
Senhora de Fátima, somente o telejornal apresentou a matéria sobre a
canonização dos pastores que presenciaram a aparição e que aliás, foram
canonizados em referência a um milagre atribuído a eles e ocorrido no Brasil.
Bem, por isso, resolvi escrever.
A Abolição da Escravidão é um dia importantíssimo no calendário histórico nacional. Infelizmente essa abolição aconteceu sem que o Brasil estivesse preparado para receber o novo cidadão, um homem e uma mulher que assim como seus ancestrais derramaram seu sangue nas lavouras, na construção de obras públicas e religiosas, no tronco, nas guerras e que muitas vezes deram a própria vida.
A abolição da escravidão enfrentou muitos percalços e o maior deles foi a resistência da aristocracia rural brasileira para a qual o escravo ainda representava “os pés e as mãos”, parafraseando o Padre Antonil.
A partir de 1850, com a abolição do tráfico negreiro o movimento abolicionista foi se fortalecendo, porém, o Império não apresentava soluções para o problema da mão de obra em um país que insistia em manter-se agroexportador.
As leis posteriores foram a Lei Rio Branco de 28 de setembro de 1871, também conhecida como Lei do Ventre Livre, mas que concedia liberdade definitiva à criança somente quando adulto, aos 21 anos. O que a lei trouxe de positivo foi o fato de que o fazendeiro poderia manter criança consigo até os 8 anos e depois entregá-la ao Império, que iria ressarci-lo. Desta maneira a criança era encaminhada a um asilo, onde permanecia até os 21 anos.
Surgiram asilos que recebiam essas crianças e houveram casos como o do Asilo Isabel criado pelo Monsenhor Amador Bueno. Este sacerdote ganhou um terreno do Barão de Marília e recolheu doações para fundar o Asilo Isabel, na Rua Mariz e Barros, bairro da Tijuca. O nome do asilo era uma homenagem à Princesa Isabel, já que o monsenhor era também capelão de família real. O projeto do Monsenhor Amador era que as crianças recebessem educação e saíssem de lá com uma profissão.
Essa foi uma experiência positiva, porém, nem sempre foi assim. O fazendeiro poderia manter a criança consigo até que completasse 21 anos, para com seu trabalho obter ressarcimento financeiro e depois libertá-la, ou seja, em tempos de dificuldades para obter escravos e com a falta de mão de obra, essa foi a opção de muitos fazendeiros. Outros aproveitavam para se livrar dos seus filhos bastardos entregando-os ao Império quando completavam 8 anos. Enfim, a Lei Rio Branco ou Lei do Ventre Livre foi um engodo.
Aos 28 de setembro de 1885 foi publicada a Lei Saraiva-Cotegipe ou Lei dos Sexagenários. De acordo com essa lei, os negros, homens e mulheres seriam livres ao completar sessenta anos. Porém, havia ainda a possibilidade de que o fazendeiro mantivesse aquele homem ou aquela mulher consigo por mais 5 anos, afim de ser ressarcido da sua perda financeira.
Poucos negros e negras chegavam a idade tão avançada. Alguns estudos recentes demonstraram que a expectativa de vida dos escravos cresceu após 1850, isto porque a impossibilidade de obter mão de obra modificou também o tratamento dos escravos pelos fazendeiros. Mesmo assim, poucos chegavam aos sessenta ou sessenta e cinco anos e quando isso acontecia, não tinham mais força suficiente para os trabalhos fosse na casa grande e menos ainda na lavoura.
A Lei dos Sexagenários permitiu que os fazendeiros se livrassem de um homem ou uma mulher que se lhes tornava um peso, sem nenhuma crise de consciência cristã.
O homem e a mulher que atingiam os sessenta ou sessenta e cinco anos, libertos, passavam a viver na sua casinha e submetidos à caridade pública. Assim nasceu a figura do Preto Velho e da Preta Velha. Um homem ou uma mulher, vovozinhos, que possuíam a sabedora da vida, o conhecimento das ervas e que davam conselhos e rezavam por todos que lhes pediam orações. Eram também benzedores que libertavam as crianças do quebranto e aos homens e mulheres de diversos males através da sua oração. Devotos de Nossa Senhora, geralmente traziam um rosário em suas mãos ou transpassado no corpo.
Na Bahia, no Recôncavo canavieiro surgiu a Irmandade da Boa Morte composta por mulheres negras viúvas que dedicam-se ao culto de Nossa Senhora da Boa Morte e Santa Ana ou Sant’Ana. Nessa irmandade a religião católica e as tradições africanas, especialmente o culto a Nanã Buruku que está associada à lama dos rios e assim ao nascimento e à morte se uniram e esta irmandade possui um padre capelão que as acompanha.
Muitas Irmandades do Rosário dos Pretos se espalharam por diversas regiões do Brasil e estas expressam mais uma vez a figura desses Pretos Velhos que na juventude construíram esses templos e depois neles rezaram.
A figura dos Pretos Velhos é uma instituição brasileira, arraigada em nossa tradição tanto legislativa, quanto social, quanto religiosa. Não procurem Pretos e Pretas Velhas em cultos de matriz africana de outras nações que não serão encontrados. Não como os temos no Brasil.
A abolição ocorreu aos 13 de maio de 1888. Foi importantíssima para o Brasil. Pensar essa data representa refletir sobre esse homem e essa mulher negros que ainda sofrem marginalização neste país que os relegou a um segundo plano há 129 anos quando os transformou em cidadãos mas sem condições de exercer a cidadania, pois faltava-lhes trabalho, dignidade, respeito, educação, saúde e proteção.
Esquecer essa data pode representar que
continuamos a reproduzir o mesmo quadro.
Por quanto tempo essa retórica ainda terá que
soar?
Gilberto Aparecido Angelozzi
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